Natal chegando. Julia estava desempregada e Wilson, seu namorado, conseguiu alguns dias de folga na empresa onde trabalhava. Queriam conhecer a praia Arabetu Mirim, no litoral norte de São Paulo. Ficaram sabendo que a praia estava em uma região inacessível, protegido pelo governo, sendo localizada em um parque estadual.
As fotos da praia eram maravilhosas. Haviam poucas e eram difíceis de achar. Na internet havia relatos de pessoas que acamparam ali, todas maravilhadas com a beleza do lugar. Apesar do acesso ser proibido, era possível chegar ali por uma trilha a partir de uma praia vizinha.
O casal gostava de aventuras, viajavam sempre que podiam e gostavam de conhecer lugares, pessoas, culturas. A proibição do lugar apenas aumentava seu desejo de conhecer o local. Pela internet pesquisaram sobre o local. Além dos relatos de pessoas que foram até lá pela trilha escondida na floresta do parque estadual, também leram sobre a lenda sobre um animal que matava quem se aventurava a andar por ali. Como os nomes dos locais, as lendas também tinham origens indígenas, isso não assustava o casal.
Saindo do interior de Minas Gerais, o casal levou quase o dia todo para chegar em Ubatuba, uma cidade que ficava relativamente próxima ao Parque Estadual. Passaram a noite em uma pousada, que encontraram na internet. Combinaram com o dono da pousada de deixar o carro deles ali por alguns dias, depois voltariam para pegar.
No outro dia bem cedo, arrumaram suas mochilas de acampar, levando o básico para passar alguns dias longe da civilização. Uma barraca, colchão inflável, algumas mudas de roupa, comida e utensílios de cozinha. Fósforo, corda e outras pequenas coisas que poderiam auxiliar sua estada ali. As mochilas eram grandes e pesadas, mas necessárias para um mínimo de conforto e segurança em um lugar isolado. Foram até o terminal rodoviário da cidade e pegaram um circular que iria até as cidades mais próximas. Conversaram com o motorista e desceram logo após o parque estadual, em uma estradinha que dava acesso à praia onde estaria o início da trilha que queriam.
O dia já estava quase na metade quando chegaram, finalmente, na praia. Não em Arabetu Mirim, mas onde iriam encontrar o caminho descrito no meio do parque.
Chegaram por uma estradinha de terra. Fazendas, chácaras, plantações, campos com gado margeavam a estrada. Viram o mar pouco antes de chegar à praia. Ao saírem da estrada, direto para a areia, viram que não seria fácil chegar à Arabetu Mirim. Para a esquerda, a praia se perdia de vista. Havia algumas construções por ali, mas não encontraram nenhuma pessoa. Para a direita, ficava seu destino. Um ou dois quilômetros à frente, começava uma montanha alta, cheia de vegetação fechada, que avançava mar adentro. Decidiram ir imediatamente pra lá.
Chegaram no pé da montanha quinze minutos depois. Um rio saía da mata e se unia ao mar, cortando seu caminho. Depois do rio ainda havia uma cerca de arame, dificultando o acesso à mata. Também existiam placas com os dizeres: “Proibida a entrada de pessoas não autorizadas.”
- Ah. Não podemos entrar. - Falou Julia. - Vamos voltar?
Wilson riu alto e o casal avançou pelo rio. Eles sabiam que perto do mar, o rio não era fundo. Na verdade a água chegava até o meio da canela. O que não sabiam era como aquela água era gelada. Wilson chegou a pensar que nem a água que tinha em sua geladeira era tão gelada.
Seguindo as instruções que encontraram na internet, encontraram uma certa pedra em formato de meia lua, onde passaram pela cerca de arame farpado e seguiram para a mata fechada. Caminharam alguns minutos com dificuldade, até que encontraram uma clareira.
Passava do meio dia quando atingiram a clareira. Sentaram ali e comeram um sanduíche antes de continuar. Podiam ver que dali saia uma espécie de caminho, entre a vegetação fechada. O sol quase não penetrava ali, e o chão era forrado de folhas mortas e úmidas, além de alguns galhos e, ocasionalmente, algum lixo humano.
- O povo é porco mesmo. - Falou Julia. - Deixam lixo mesmo em um parque protegido.
- Deve ser por isso que o acesso é proibido. - Respondeu Wilson. - Pelo menos nós vamos levar nosso próprio lixo.
E assim seguiram pela trilha. Ingrime e cheia de curvas, mas só assim para poderem transpor uma montanha daquela altura. O barulho do vento e os borrachudos eram tudo o que encontraram durante a tarde toda. Quando a noite chegou, Wilson disse:
- Acho melhor dormimos por aqui. Mesmo com lanternas, vai ser perigoso andar à noite. Pode ter cobras, ou algum buraco q torcermos o pé.
- Mas estamos tão perto... Eu acho. E não cabe nossa barraca aqui. A trilha é muito estreita.
- Faz um tempo que estamos descendo. Esse pedaço é relativamente plano. Se continuarmos, podemos nos machucar e acabar com nossas férias. Ainda acho que devemos passar a noite aqui e chegar lá pela manhã.
- E como faremos para dormir sem a barraca? Se um escorpião ou outro inseto picar a gente?
- Pegue a lanterna e aponte para cá.
Wilson pegou a barraca e estendeu sobre o caminho. Amarrou as pontas na vegetação lateral, formando um forro no chão e nas paredes.
- Acho que temos um pouco de proteção aqui. - Disse ele.
Pegou o colchão inflável e forrou sobre a barraca, dobrando três vezes sobre ele. Depois pegou sua mochila e colocou atravessada em uma das extremidades da barraca, fechando assim o caminho por um lado.
- Quando formos dormir, nos cobrimos e fechamos o outro lado com a outra mochila. Não tem teto, mas acho que estaremos protegidos contras os seres noturnos.
Julia sorriu e se lembrou de como amava a genialidade de seu namorado, como ela chamava.
Depois de comerem, foram para seu abrigo improvisado. Era apertado, desconfortável, mas funcional. Se sentiram protegidos ali. A escuridão era total, o silêncio também.
- Estranho. - Disse Julia. - Não escuto nem o barulho das árvores.
- Não deve estar ventando hoje. - Respondeu Wilson. - Mas o clima está freco pelo menos.
Pouco antes de dormir, Wilson imaginou ter ouvido um grito muito distante e baixinho. Mas estava sonolento e decidiu que era apenas um sonho que tinha chegado mais cedo à sua cabeça.
No outro dia, assim que o sol iluminou o caminho suficiente, o casal se levantou. Estavam doloridos. Inteiros mas cansados.
- O que é isso? - Perguntou Julia.
A mochila que fechava o caminho adiante deles estava alguns metros adiante, já na curva para descer.
- Vamos nos arrumar. - Falou Wilson, não querendo demonstrar sua preocupação para Julia.
Logo estavam com tudo empacotado novamente e seguiram pela trilha.
Apenas duas horas depois, a inclinação parou e andaram até chegarem à outra clareira. De onde podiam ver o mar.
- Não aguento isso, bando de porcos. - Falou Julia.
Só então Wilson percebeu. Havia uma barraca quebrada e rasgada na clareira. Restos de acampamento. Muita sujeira e bagunça ali. Trapos de tecido jugados por toda a parte, restos de fogueira, etc.
- Isso justifica o motivo do governo fechar a área para visitação. - Falou Wilson. - Vamos limpar o lugar e acampar aqui.
- Sim. Mas depois. - Respondeu Julia. - Quero ver o mar.
Deixando as coisas na clareira, o casal correu para o mar. Pularam ondas, descansaram na praia, tiraram fotos. O lugar era mesmo de tirar o fôlego. Ficava em uma baía cercada por montanhas. A água era de um azul vítreo. As ondas não eram muito fortes, e um pouco mais ao fundo, eram apenas marolas. Passaram o dia todo ali.
No final da tarde, arrumaram o local, colocaram toda a bagunça e sujeira em sacos plásticos que esconderam perto da clareira e armaram seu acampamento ali. A barraca no canto, com suas coisas dentro, uma fogueira no centro, com um suporte para uma ou duas panelas, algumas esteiras para poderem se mover sem sujar suas coisas.
Cozinharam e comeram um pedaço de carne, que iria se estragar logo pois não havia refrigeração ali, e alguns vegetais. Estavam cansados, dormiram mal a noite passada, caminharam, brincaram no mar e ainda arrumaram a sujeira de outras pessoas para poderem se divertir ali. Pelo menos estavam com a consciência tranquila. Foram deitar. Fizeram amor e depois dormiram ao som das ondas do mar.
Wilson acordou no meio da noite.
- O que foi? - Perguntou Julia.
- Achei ter ouvido um barulho. Algo como uma lata batendo.
- Deve ter sido um sonho. Vem deitar.
- Acho que sim, mas já que acordei, vou urinar.
Então Wilson saiu da barraca e Julia ouviu seus passos se afastando antes de cair no sono novamente.
A claridade invadiu a barraca lentamente, até Julia acordar. Wilson não estava ao seu lado. “Deve estar fazendo café.” Pensou Julia. Ela adorava café. Colocou um biquíni e saiu da barraca. O fogo já estava apagado há horas. “Estranho”. Pensou ela.
- Wilson! - Gritou. Mas não obteve resposta.
Foi até a praia. Estava vazia. Chamou pelo namorado mais algumas vezes e não obteve resposta. “Deve voltar logo, talvez tenha ido buscar alguma fruta ou explorar o lugar.” Julia se tranquilizou e foi tomar um banho de mar. Ficou na água até o estômago doer de fome. Saiu e voltou para o acampamento. Continuava igual. Julia começoou a se preocupar. “E se ele se machucou e não consegue andar? Vou procurar o Wilson”. Decidiu.
Foi até o final da praia e voltou. A mata chegava até a praia e havia apenas um lugar que parecia ter uma trilha ainda menor do que a que eles chegaram. Julia voltou até lá e entrou. Um pedaço de tecido estava enroscado em uma árvore mais à frente. Era da mesma cor da camisa que Wilson estava usando no dia anterior. Julia decidiu procurar mas adentro da mata.
A trilha tinha se transformado em espaços entre árvores, não tendo um rumo definido, algumas horas depois que Julia havia entrado. Ela chamava pelo Wilson e nunca ouvia uma resposta. “Talvez ele tenha voltado”. Pensou, e decidiu voltar.
-Juliaaa! - Escutou a voz de seu namorado chamando e correu na direção que julgou vir o som. Tropeçou e caiu algumas vezes. Na última, ao levantar os olhos, viu Wilson amarrado à uma árvore todo ensanguentado. Quando foi se levantar, o mundo ficou escuro.
Ao acordar, Julia sentiu o cheiro de cachorro molhado. Era desagradável. Onde ela estava? Por que sua cabeça doía tando na parte de trás? Tentou abrir os olhos mas a claridade fez seus eles arderem. Demorou um pouco para olhar o sol entrando pela porta do que parecia ser uma cabana. Tinha algo incomodando suas costas, se sentou e olhou o que era. Um osso. Quase do comprimento de sua coxa. O susto clareou sua cabeça e ela se lembrou de tudo. Alguns ossos estavam espalhados pelo chão. Ela se levantou mas escorregou em outros ossos e caiu novamente. Ao olhar para trás, gritou.
Julia não viu a pilha de ossos que ia de uma parede à outra, cobrindo o fundo da cabana. Não reparou nos crânios humanos entre eles, ou nas mãos e pés por ali. Alguns apodrecendo, outros apenas ossos. Tudo o que Julia viu, foi A cabeça de Wilson, com metade do rosto dilacerado por dois talhos no lado direito. Presa à metade do corpo. Não havia mais Wilson abaixo do peito. Pelo menos do lado que Julia podia ver, sua braço também se fora.
Gritando e chorando, Julia se pôs a correr para fora da cabana. Crânios humanos estavam enfiados em estacas nas margens do caminho por onde passava. Ao olhar para trás, enquanto corria, Julia viu um vulto grande, entrando na cabana, desaparecendo um rabo peludo e marrom por último ali dentro.
Um uivo alto assustou Julia no mesmo momento que ela viu a praia ao longe. O crepúsculo começava a se formar. Ela estava exausta. O medo dava a adrenalina necessária para ela continuar. Correu em direção ao mar, rasgando suas roupas e pele na vegetação fechada. O som de passos ritmados não deixava o medo diminuir.
Na meia luz, Julia atingiu a praia. Estava longe do acampamento, mas correu mesmo assim. Nem a areia fofa conseguiu impedir Julia de correr. Em um instante chegou à clareira. Parou com a cena.
A barraca estava quebrada, vazia, esparramada pelo chão. Algumas de suas roupas agora eram trapos espalhados por ali. A fogueira estava do mesmo jeito que tinha deixado pela manhã.
Uma dor lancinante atingiu Julia de sua nuca até seu quadril. O cheiro de cachorro molhado tomou conta de suas narinas momentos antes dela perder a consciência.