Conto: Piro-Less
Publicado em 03/08/2020 | 10:34 - 999

Maria levava uma vida sossegada, terminou o colegial mas não entrou na faculdade, trabalhava vendendo sapatos em uma loja no centro da cidade pacata no interior de Minas Gerais. Trinta mil habitantes, quinze quilômetros de outra cidade grande, mas não importava, Maria tinha seus amigos, um paquera, ganhava o suficiente para se manter. A casa onde morava foi herança dos seus pais, que morreram quando era jovem. Foi criada por uma tia que não gostava dela, então logo que fez dezoito anos, foi morar sozinha. Os cabelos de Maria eram encaracolados, e por mais que tentasse fazer uma chapinha ou um alisamento, eles voltavam a se encaracolar em poucos minutos. Com seus vinte e dois anos, chegou em casa depois de um dia de trabalho típico, molhada, pois uma chuva de verão a pegou desprevenida no caminho de volta e não havia lugar para se esconder. Maria gostava de tomar banhos quentes, quase escaldantes, se sentia confortável com a água em temperatura elevada. Depois do banho decidiu cozinhar um macarrão instantâneo e assistir um filme qualquer. Não tinha planos para aquela noite. Mas foi essa noite que ficaria marcada para sempre em sua memória. Ainda enrolada na toalha, Maria colocou duas vezes mais água na panela, pois faria dois macarrões de uma vez. Estava com fome. Foi para a sala ligar a TV, colocou em um canal aleatório e logo voltou para a cozinha para verificar a água. Na frente do fogão, escorregou em uma poça de água que se formara quando ela colocou a água para ferver. Essa mania de não se secar e só enrolar o corpo na toalha. Enquanto caía, por instinto tentou se segurar no que havia perto, então bateu o braço no cabo da panela. A água já borbulhava, caiu sobre o rosto e peito da jovem. Maria percebeu o que iria acontecer quando tocou o braço na panela. Se imaginou deformada com queimaduras por todo o rosto e corpo, os garotos nunca mais iriam olhar para ela do mesmo modo. Desesperada fechou os olhos e tentou parar a panela que caia, mas foi em vão. A água se espalhou pelo corpo e a panela ainda se alojou em sua barriga. O desespero levou Maria a gritar, mas não entendeu porque a dor não veio. Estava toda molhada, a panela ainda soltava vapor, mesmo vazia, mas apenas sentia aquele calor agradável de uma água morna. Pegou a panela com as mãos nuas, mas não se queimou. As mãos continuavam lisas, apenas o esmalte formou bolhas onde a água tocou. Achou que estava sonhando, então pegou uma faca e fez um pequeno corte no braço. O corte doeu bastante e depois ainda ficou ardendo. Assustada, Maria não conseguia dormir. “Será que morri?” Quando fechava os olhos, ela via aquela água em sua direção. A água vinha em câmera lenta e ela não tinha forças ou velocidade suficiente para sair do caminho. Sem conseguir dormir, Maria se levantou e foi até o fogão. Acendeu uma boca e ficou olhando fixamente para o fogo. Achou que estava ficando louca, mas criou coragem e colocou uma mão sobre as chamas. Tirou na mesma hora com medo de se queimar, mas não sentiu nenhum tipo de dor, então colocou a mão novamente, mais devagar desta vez. A mão foi lentamente para as chamas, mas Maria não sentiu nenhuma dor. Esperou quase um minuto inteiro antes de tirar a mão do fogo, imaginando se não estaria se machucando e algum problema cerebral tinha tirado sua capacidade de sentir dor. Mas não. Olhou para a mão, estava sem qualquer tipo de queimadura ou mesmo vermelhidão. Apenas o esmalte das unhas que tinha se estragado. Depois disso, a exaustão tomou conta dela e Maria dormiu um sono pesado. Insuficiente.
Quando acordou, parecia que não tinha dormido nada. Estava atrasada para o trabalho. Aquela sensação de um sonho ruim, passou pela cozinha e a panela estava na pia para ser lavada. Onde mais poderia estar? Passou o dia na loja mas não conseguiu se concentrar. Correu para casa e não se conteve, acendeu o fogão e colocou a mão. Era verdade. Não sentiu nenhum dor, a pele não se estragou, apenas um anel que estava usando ficou preto. Chamou os amigos e disse que tinha algo para contar para eles, foram vários na casa dela, mas ela esperou para poder contar de uma vez para o máximo de pessoas que conseguisse.
- O que aconteceu? Engravidou? – Perguntava um.
- Já sei! Resolveu ir embora dessa cidadezinha de merda. – Disse outro.
- Esperem, vocês não vão se arrepender. – Dizia Maria.
- Conta logo, o Renato pediu pra você casar com ele, não foi? – Falou outra amiga.
Quando Maria achou que ninguém mais chegaria, resolveu mostrar. Chamou todo mundo para a sala, colocou um cesto de lixo de metal na frente da poltrona que ocupava e acendeu uma folha de papel com um isqueiro. Posicionou a folha em cima do lixo e colocou o braço em cima.
- Para! Você está louca. – Gritou uma amiga.
Outras começaram a gritar e um dos homens se levantou para tentar tirar o braço dela, mas Maria soltou o resto da folha no lixo.
- Olhem. – Disse, virando o braço. As mulheres viraram o rosto, os homens chegaram mais perto, um deles filmava tudo com o celular, queria gravar qual era a grande revelação.
- Como isso? – Dizia um.
– Não se queimou. – Falou outro.
As mulheres perderam o medo e foram ver. A pele continuava perfeita, apenas vermelha onde tinha sido arranhada no dia anterior. Todos começaram a falar ao mesmo tempo, perguntando “como”, “quando”, “por quê”.
- Eu não sei, só descobri ontem a noite. – Respondeu, e contou a todos sua experiência.
Pediram e ela repetiu, colocou fogo no papel e colocou no braço. Descobriram que nem o cabelo dela pegava fogo, mas se ela estivesse usando algo, esse objeto era sim afetado. No outro dia não foi trabalhar, começou a receber diversos e-mails, alguém postou o vídeo na internet e teve quase um milhão de visualizações logo no primeiro dia. Muita gente dizendo que era montagem, mensagens inflamadas nas redes sociais, religiosos dizendo que era coisa demoníaca, outros que era parapsicologia, etc. Estava impossível de usar seu perfil na rede social, as pessoas descobriram seu e-mail e enviaram inúmeros e-mails. A própria Maria estava fascinada, nunca imaginou ficar tão famosa da noite para o dia. Em três dias, já passava de doze milhões de visualizações. Ela teve que desligar os telefones, alguém descobriu e espalhou junto com o vídeo, e ele não parava de tocar. Pessoas ameaçando, dizendo ser mentira, outras maravilhadas, pedindo dinheiro, pedindo bênçãos, pedindo curas. No quinto dia bateram na sua porta. Era um produtor de um show de TV, gostariam de entrevista-la. Maria que quase nunca saía da cidade, foi levada à capital, onde andou de avião pela primeira vez. No caminho as pessoas falavam com ela como se a conhecessem há tempos, pediam autógrafos, fotos, etc. Depois da primeira entrevista, vários programas a chamavam para participações especiais, sempre pedindo para ela mostrar esse dom. A jovem, antes desconhecida, se tornou uma celebridade instantânea, logo começou a ganhar dinheiro com participações, comerciais e eventos. Recebia todo tipo de propostas, desde ofertas de dinheiro por sexo até contratos de exclusividade com alguma grife famosa. Outras propostas eram mais grotescas, como uma companhia pesquisadora que queria descobrir o porquê dela não se queimar e tentar reproduzir com outras pessoas. Após alguns meses, Maria voltava de um programa de TV para o apartamento que comprou na capital.
Dirigindo seu próprio carro, não percebeu a aproximação de duas vans pretas. A primeira fechou seu caminho, ela freou e desceu do carro para tirar satisfações com o motorista, foi quando homens encapuzados a agarraram e a colocaram dentro da segunda van. Ao entrar na van, alguém lhe colocou um saco preto na cabeça, era difícil respirar. Foram algumas horas amarrada no chão da van, depois lhe tiraram de lá e a levaram para outro veículo. Logo descobriu ser um avião, pequeno e com muita turbulência. Voou algumas horas antes de descer. Foi colocada em um carro, sentada entre dois homens, sempre com o saco na cabeça e as mãos amarradas para trás. Mais algumas horas de viagem, Maria estava faminta, exausta, dolorida das cordas que a amarravam e com falta de ar. Um dos homens puxou-a para fora quando o carro parou, Maria foi cambaleando quase arrastada pelo homem. Após andar alguns minutos, o homem parou, Maria sentiu que foi solta. Amarrada, de pé, com o saco preto na cabeça, Maria ouviu barulho de uma porta se fechando, algum tipo de trava eletrônica e zumbidos de máquinas se movendo. Então um barulho forte de um líquido sendo expelido com bastante pressão, o ambiente ficou um pouco mais quente e o saco começou a clarear, como se uma luz muito forte penetrasse através do tecido. Um buraco se abriu e uma luz laranja se infiltrou. O buraco aumentou, suas mãos estavam livres novamente, fechou os olhos, pois a luz estava muito forte. Quando os abriu novamente, viu que estava envolta em chamas. O fogo consumiu tudo, roupas, joias, cordas, papéis. Maria estava completamente nua quando as chamas foram apagadas. Seus cabelos, pelos, até cílios estavam intactos. Olhou em volta e se descobriu em uma sala pequena e sem janelas, com marcas de fogo nas paredes. Um incinerador. A porta se abriu e um homem entrou, Maria tentou tapar seu corpo nu, mas o homem a pegou pelo pulso e levou para outra parte. Ela foi colocada em um quarto trancado, que tinha uma janela com grades e uma cama. Algumas roupas estavam sobre a cama e ela vestiu-as. Uma espécie de camisola, aberta na parte de trás. Maria olhou pela janela, estava no primeiro andar de um complexo de prédio que tinham no máximo cinco andares, podia ver um jardim no centro e uma estrada que terminava em uma rotatória para os carros poderem voltar. Não viu ninguém do lado de fora. Algum tempo depois outro homem, vestido como um enfermeiro, entrou com um prato de comida e um copo de água. Era uma comida simples, arroz, feijão, um bife e uma salada. Maria comeu tudo, pois estava faminta. Ficou sozinha e logo adormeceu, estava exausta da viagem desconfortável. Não sabia dizer quanto tempo dormiu, mas estava claro quando o enfermeiro voltou, levou-a pelo corredor enquanto ela perguntava:
- Onde estou? O que vocês querem comigo? Quem são vocês?
Mas o enfermeiro não respondia. Na verdade parecia nem estar ouvindo a Maria. Logo ela foi deixada em uma sala, sobre uma mesa de aço inoxidável, amarrada pelos pulsos e pelos tornozelos. Pouco depois entrou outro homem, com um jaleco branco. Pegou uma seringa e coletou vários frascos do sangue da Maria. Também se mostrou surdo às indagações e súplicas da jovem. Acendeu um isqueiro e passou pelo corpo todo, pelos cabelos e nada se queimou. Pegou uma tesoura e cortou uma mexa do seu cabelo. Colocou a mexa em um vidro e com um bastão, colocou fogo. O cabelo se incendiou imediatamente.
- Fascinante. – Foi a única palavra que Maria ouviu aquele dia. Por dias e dias sua vida se transformou em ser uma cobaia de laboratório. Foi cortada, raspada, queimada, examinada de todos os meios possíveis e imagináveis. Ninguém respondia qualquer uma de suas perguntas, então parou de conversar com os captores. Em menos de um mês, os jornais pararam de noticiar sobre o sumiço de Maria, logo encontraram uma pessoa que conseguia erguer um carro completamente do chão sem nenhum esforço aparente. Nunca mais se ouviu falar de Maria, sua casa passou para a tia que a criou, seus amigos a esqueceram com o tempo.
Cinco anos depois, Med Cruz, uma grande indústria farmacêutica, entrou com um remédio revolucionário no mercado, o Piro-Less®. O remédio prometia reduzir em até 90% as cicatrizes resultantes de queimaduras de qualquer espécie. Logo se tornou líder de mercado.


Comentários
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03/08/2020 às 10:43
Adorei
João

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